quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O contexto de Clara de Assis - Parte 3

Da nobreza a São Damião: itinerário e proposta de Clara de Assis.

3ª Parte

                                               Nova forma de vida

O nome “Irmãs Pobres”, escolhido por Clara para designar o grupo, indica que o eixo central de sua forma de vida está justamente na pobreza e na irmandade.

Pobreza

A pobreza é bem concreta, não é idealizada. Com a recusa à posse de bens rentáveis, as Damianitas compartilham a sorte dos menos favorecidos, aqueles que nem mesmo nas comunas livres eram contados como cidadãos e cidadãs. Mas essa mesma opção se desdobra em outros aspectos, no modo de viver e nas relações de trabalho.
A casa é simples, as vestes são rústicas, os alimentos apenas suficientes. As Damianitas trabalham com as próprias mãos para se manter. Mas não seguem os critérios econômicos da época, não vendem nem acumulam o fruto do trabalho. Não são as servas da sociedade feudal, nem as operárias da nascente indústria. Possuem os instrumentos de trabalho, mas ninguém faz o papel do patrão. Todas trabalham, inclusive a abadessa, “com fidelidade e devoção”. A fidelidade indica o compromisso e o senso de responsabilidade com que o trabalho deve ser feito; a devoção indica o espírito, as motivações que o acompanham. O sistema é democrático: decidem em capítulo o trabalho que compete a cada uma (RSC 7,1-3). Quando é necessário, completam o sustento com esmolas, como fazem os pobres.

Irmandade

A irmandade é cultivada com sabedoria, persistência e realismo e tem várias dimensões: entre aquelas que assumiram o mesmo projeto de vida; com os Frades Menores; na comunidade eclesial; com todas as criaturas.
Irmandade em São Damião. Todas são igualmente irmãs, sem distinção de classe social, idade ou serviço assumido. O amor deve ser concreto, demonstrado com atitudes e obras (Test 59-60; RSC 10,6-7). Pede-se atenção especial às doentes, frágeis e aflitas (RSC 3, 10; 4,11-12; 8,12-14).
Mas Clara sabe que não bastam exortações e bons propósitos para que a irmandade aconteça. Por isso, organiza de forma democrática a convivência: estabelece o capítulo semanal, onde são tomadas as principais decisões; cria o conselho das discretas, para que a abadessa não governe sozinha; prescreve a participação de todas na eleição para os diferentes serviços (RSC 4,15-18.22-24).
Clara sabe também que a unidade no mesmo projeto de vida não faz desaparecer as diferenças e desejos individuais, e não tem força suficiente para eliminar a fragilidade humana. Por isso, é necessário cultivar alguns gestos e atitudes, para que as tensões e conflitos não resultem em destruição, mas ajudem no crescimento da irmandade. Cada uma deve manifestar à outra, com simplicidade e sem medo, suas necessidades; todas, inclusive a abadessa, são convidadas a praticar a correção mútua com caridade, pedir perdão com humildade e concedê-lo com misericórdia; as que servem fora do mosteiro não devem espalhar o que acontece em casa, nem trazer para casa boatos que não edificam (RSC 4,15-16; 9,6-10.15-16).
Comparando a Regra de Clara com as regras curiais da época, percebe-se em Clara muito mais flexibilidade. Se houver uma necessidade manifesta, um motivo justo e razoável, as irmãs podem agir de maneira diferente do que foi prescrito, pois a caridade está sempre acima da lei. Clara confia na maturidade das irmãs e as convoca à responsabilidade e ao discernimento.
A vivência da pobreza também é fundamental para tecer irmandade. A posse de bens cria barreiras entre as pessoas, e o amor egoísta às coisas temporais faz perder o fruto da caridade. Nas muitas lutas que o seguimento de Jesus exige, afirma Clara, quem está “nu” (despojado de bens) leva vantagem, pois vai mais depressa ao chão quem tem onde ser agarrado (1In 25-27).
Clara entende o ministério da autoridade como um serviço evangélico, que não está acima do ser irmã. Por isso, nunca usa para si o título de abadessa. Ela fala da atitude materna e misericordiosa de quem assume este serviço. Deve ser uma pessoa bondosa e previdente, inspirar confiança e convencer mais pelo amor do que pela imposição. As irmãs, por sua vez, precisam entender as dificuldades desse oficio, procurando torná-lo mais leve por uma boa convivência (TestC 61-70).
Irmandade com os Frades Menores. Entre as Irmãs Pobres e os Frades Menores também se estabelecem relações de irmandade, tecidas passo a passo, enfrentando as dificuldades comuns a todo relacionamento humano e também aquelas decorrentes do contexto da época, nada favorável a uma relação igualitária entre homens e mulheres.
Logo no início, Clara e suas irmãs tiveram que provar a Francisco que também eram capazes de viver a pobreza evangélica na forma dos penitentes (TestC 27-29). Depois vieram outras dificuldades. A primeira delas foi logo após o IV Concílio de Latrão (1215), quando as Damianitas foram obrigadas a assumir a Regra beneditina (PC 1,6). Em seguida, tiveram início os contatos com o cardeal Hugolino, empenhado em unir numa só Ordem os novos grupos religiosos de mulheres, sem levar em conta as características particulares de cada um. O quadro se completa com a nomeação de um visitador cisterciense para São Damião.
A crise maior entre os dois grupos acontece por volta de 1220 e alguns aspectos merecem destaque: Francisco se recusa a chamar as Damianitas de “irmãs”, preferindo o título “senhoras”; ele mesmo se afasta de São Damião “para dar o exemplo” aos frades; não aceita que Frei Felipe Longo seja o visitador das “Senhoras Pobres”; escreve na Regra que os frades estão proibidos de entrar em mosteiros femininos, a não ser com licença da Sé Apostólica.
Podemos imaginar o que tudo isso significou para Clara. Certamente ela procurou entender as razões de Francisco, pois ele também era fruto da cultura de sua época. Além disso, havia outros fatores: as pressões da instituição eclesial; o medo de que os dois grupos fossem acusados de heresia; as cobranças da sociedade e até dos frades...
Mas Clara tinha convicções e não desanimou. Como Francisco, sabia que um só Espírito havia unido os dois grupos (2Cel 204). Mais do que Francisco, sentia o quanto essa unidade era importante para São Damião e para todo o movimento. Por isso buscou saídas e fez até “greve de fome” quando o papa Gregório IX confirmou que a proibição de os fades entrarem em mosteiros femininos, valia também para São Damião (LSC 37).
Em 1247, Inocêncio IV escreve uma nova Regra e passa a Ordem de São Damião para a jurisdição dos Frades Menores. Isso era bom, mas havia um ponto que Clara não podia aceitar: o papa dava à Ordem dos Frades poder de governo sobre as Irmãs. É nesse ponto que ela escreve a própria Regra e deixa bem evidente o que deseja: uma ligação de irmãos e irmãs na vivência do mesmo projeto de vida. O espírito deve ser de gratuidade, de serviço e de entreajuda misericordiosa. Mas as Damianitas são livres para tomar as próprias decisões.
Irmandade eclesial. Clara pouco escreve sobre a comunidade eclesial. Mas seu testemunho também aqui fala alto. A maneira como vive com suas irmãs anuncia a possibilidade de uma comunidade eclesial nova, mais próxima da utopia do Evangelho. Com essa mesma vivência, as Damianitas denunciam o acúmulo de bens na Igreja, as hierarquias que colocam uns sobre os outros, as disputas de poder, a parceria com os bem situados na sociedade, o espírito de conquista e de vingança, a subordinação das mulheres aos homens.
Irmandade com todas as criaturas. Esse aspecto não aparece explicitamente nos escritos de Clara. Existe apenas uma passagem no Processo de Canonização onde se diz que Clara recomendava às irmãs que louvassem a Deus pelas pessoas e por todas as criaturas (PC 14,9). Mesmo na falta de outros escritos, tem-se como certo que a discípula fiel de Francisco, a companheira inseparável no mesmo projeto de vida, compartilhou em profundidade também essa importante dimensão da irmandade franciscana.
Irmandade com os mais pobres e abertura em relação à cidade. A irmandade com os mais pobres e destituídos de poder concretizou-se na partilha dos bens, na renúncia a toda propriedade, no trabalho com as próprias mãos e na opção por uma vida simples. Concretizou-se também na acolhida a quantos acorriam a São Damião em busca de auxílio.
As Damianitas não estão alheias ao que acontece em Assis. Pelo contrário, motivadas pelo mesmo espírito de irmandade participam de suas lutas, principalmente em busca de paz. Os poucos meios de que dispõem são suficientes para alcançar os objetivos desejados (LSC 21-23).

                                                                                                          Ir. Delir Brunelli – CF

Para refletir: Como podemos tornar mais concreta nossa vivência da pobreza evangélica na realidade de hoje? Que aspectos da vivência da irmandade são mais desafiadores para nós neste momento? O projeto de vida clariano teve como eixo principal a pobreza e a irmandade: qual seria o grande eixo de um projeto de vida cristã para os tempos atuais?

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