quarta-feira, 10 de agosto de 2011

O contexto de Clara de Assis - Parte 1


Da nobreza a São Damião: itinerário e proposta de Clara de Assis.

1ª Parte

   Época de grandes mudanças

O tempo de Clara de Assis é um dos períodos mais dinâmicos da história do Ocidente, marcado por grandes e decisivas mudanças: comunas livres e associações, cidades e comércio, cruzadas e peregrinações, catedrais e universidades...
No sistema feudal, que chega a seu apogeu no século XII, havia três classes bem distintas: os nobres, os trabalhadores e o clero. Era uma sociedade estável e rigidamente hierarquizada. Os trabalhadores eram vassalos e dependiam de suseranos. Mas cada suserano era vassalo de outro mais acima dele, até chegar ao topo onde estava o rei ou imperador.


Mas é justamente neste século que aparecem outras forças e colocam em cheque o modelo feudal. Ressurgem as cidades, principalmente devido ao êxodo rural e ao grande impulso comercial e artesanal. Elas deixam de ser simples centros militares e administrativos para se tornar centros econômicos, políticos e culturais.
Nas cidades, artesãos e comerciantes formam a base de uma nova classe, a classe burguesa, que procura espaço, cresce em poder e reivindica mais liberdade. Já não é possível aceitar a estrutura feudal, que dificulta os deslocamentos e o intercâmbio comercial.
O movimento comunal busca uma organização mais horizontal da sociedade, rejeitando a rígida forma hierárquica. O espírito é associativo e está presente também nas muitas agremiações e confrarias de artesãos e comerciantes.
Com o desenvolvimento econômico, cresce também a mentalidade do lucro e a injustiça social ganha novas formas. Aumenta muito o número de pobres e a pobreza assume outras características. Até aquele momento, os pobres eram aqueles que não tinham defesa diante dos poderosos. Agora, os pobres são aqueles que não conseguem o próprio sustento, que não conseguem ou não podem trabalhar. O uso generalizado do dinheiro cria um novo tipo de relação social e os pobres tornam-se pessoas anônimas, banidas do convívio humano e sem nenhum direito na nova sociedade comunal.
Outra característica deste período é a grande mobilidade humana: cavaleiros partem para as cruzadas; camponeses deslocam-se para as cidades; estudantes buscam escolas e mestres; bispos e abades visitam Roma ou vão participar de concílios; homens e mulheres de todos os meios sociais fazem longas peregrinações...
É um tempo também de muitos conflitos. No processo de implantação da comuna livre, Assis enfrenta lutas entre o poder imperial e o papado, lutas internas entre os maiores (nobres) e os menores (trabalhadores), confronto com os senhores feudais circunvizinhos, e guerras contra as cidades mais próximas, especialmente Perugia, sua maior rival. Além disso, há também muitas rixas entre pessoas, famílias e grupos sociais, com frequência resolvidas na base da espada. Sem esquecer que a Europa dos cristãos está organizando cruzadas para retomar espaços conquistados pelos árabes muçulmanos.
A Igreja desse período está bem adaptada ao modelo feudal. É poderosa e luta para manter seu poder. O clero tem pouca formação e não se preocupa com a pregação do Evangelho. A vida monástica, depois de alguns momentos de renovação, volta a se acomodar ao antigo modelo.
Por isso, em princípio, a Igreja reagiu de forma negativa diante das mudanças que estavam ocorrendo. Era preciso salvar a “tradição”, que incluía estruturas de poder, terras, organização estável. Para a teologia e a espiritualidade monástica, o mundo tinha se tornado ainda mais perigoso e era necessário desprezá-lo com maior firmeza. O desenvolvimento urbano foi visto como consequência do pecado e as cidades como refúgio para desclassificados e marginais.
Mas não faltou quem sentisse o desafio de viver a própria fé no meio desse mundo em mudança. Não faltou quem abrisse novos caminhos com a sabedoria e a coragem de quem se deixa guiar pelo Espírito de Deus.

Despertar evangélico

Desde os tempos primitivos, o ideal de vida cristã expressou-se em duas linhas distintas: aquela inspirada na comunidade primitiva de Jerusalém, onde tudo era colocado em comum, e aquela inspirada no exemplo do próprio Jesus que andava de cidade em cidade pregando o Reino de Deus, sem ter onde reclinar a cabeça. O mesmo Jesus que chamou discípulos e os enviou em missão.


Depois que o cristianismo tornou-se religião oficial do Império Romano, esse ideal cristão foi assumido pela Vida Religiosa. Os monges buscaram inspiração na comunidade de Jerusalém; os eremitas seguiram a forma do Jesus itinerante com seus discípulos. Mas o modelo monástico sempre foi predominante.
A partir do século XI, os eremitas ressurgem e lideram um intenso movimento laical. Não é mais a vida religiosa tradicional monástica, mas é um novo jeito de viver o Evangelho. A vida monástica, em alguns momentos, tinha conseguido uma boa renovação, mas o novo não surge no seu interior. Nasce do lado de forma, por outros caminhos.
As mulheres tiveram participação intensa nesse movimento, principalmente através das Beguinas. Eram “mulheres religiosas” que não assumiam uma regra determinada, mas apenas um “propósito de vida”. Formavam comunidades e dedicavam-se à oração, ao trabalho manual e a obras de assistência. Na Bélgica, habitavam pequenas casas, formando uma espécie de vila fechada. Tinham em comum a igreja e os locais de refeição e trabalho. Na Itália e Alemanha, formavam comunidades junto a igrejas, hospitais, hospedarias ou abrigos.
A Igreja orientou as novas comunidades femininas no sentido monástico, pois acreditava que fosse o único modelo conveniente às mulheres. Por isso, elas tiveram que lutar muito para conservar a inspiração original. E poucas conseguiram! Dois aspectos se tornaram decisivos: a insistência para que possuíssem bens rentáveis e a imposição da clausura. O primeiro atingia a vida de pobreza; o segundo impedia que as comunidades continuassem atendendo os pobres, doentes e peregrinos.
É neste cenário que se coloca Clara de Assis. Como foi seu itinerário? Que novos caminhos conseguiu abrir? Vamos refletir sobre isto na terceira parte.

Ir. Delir Brunelli – CF



5. Nova espiritualidade

A espiritualidade do período central da Idade Média destacava o Jesus glorioso, rei do universo e juiz universal. Diante desse Jesus todos deviam se prostrar para adorar e pedir misericórdia. A partir de São Bernardo e, mais tarde, com os movimentos evangélicos dos séculos XII e XIII, há um resgate do Jesus humano e histórico. Francisco e Clara são grandes protagonistas dessa nova espiritualidade, que tem consequências muito importantes para a vida cristã, principalmente no que se refere ao compromisso em favor dos mais pobres.
Clara tem uma consciência muito viva da divindade de Jesus Cristo: ele é o Senhor soberano e glorioso, o Rei de todos os séculos (1 In 17.19; 2In 5; 4In 4.17). Mas a ênfase recai sobre a sua humanidade. O Filho de Deus escolheu vir ao mundo de maneira pobre. É esse contraste que extasia Clara e a toca profundamente: O rei dos anjos repousa numa manjedoura! (4In 21). ...ele que regia e rege o céu e a terra, ele que disse e tudo foi feito... tão grande e elevado Senhor, vindo a um seio virginal, quis aparecer no mundo desprezado, indigente e pobre... (1In 17.19s). ...pobre foi posto no presépio, viveu pobre no mundo e ficou nu no patíbulo (TestC 45).
No Testamento, Clara diz: O Filho de Deus se fez para nós o Caminho que nosso bem-aventurado pai Francisco, que o amou e seguiu de verdade, nos mostrou e ensinou por palavra e exemplo (TestC 5). Aqui, ela não se refere simplesmente ao fato da encarnação, mas à encarnação tal como aconteceu de fato: em pobreza e humildade, no mais profundo despojamento por amor. A base dessa espiritualidade é o hino cristológico de Fl 2,6-11.
O conteúdo da contemplação clariana é esse mesmo mistério, sintetizado em três momentos: o nascimento pobre, a vida com muitas fadigas, a morte na cruz. Assim Clara diz a Inês: Olhe dentro desse espelho todos os dias.... Preste atenção à pobreza daquele que, envolto em panos, foi posto no presépio. ...considere as penas sem conta e as fadigas que suportou pela redenção do gênero humano. ...contemple a caridade inefável com que padeceu no lenho da cruz... (4In 15.19-23).
A espiritualidade da encarnação acompanhou Clara durante toda a sua vida. Ela a cultivou através da escuta atenta da Palavra de Deus e da oração; no serviço às suas irmãs e aos pobres; no relacionamento com Inês de Praga, com Francisco e seus irmãos, com as autoridades da Igreja... A motivação que a fez sair de casa naquele Domingo de Ramos não esfriou. Pelo contrário, tornou-se mais intensa com o passar dos anos. No final da vida, ela ainda está apaixonada e se propõe correr sem desfalecer até receber o abraço e o beijo de seu Amado (4In 31-32).

Para refletir: Como vivenciar, hoje, a espiritualidade da encarnação, que está no cerne do carisma de Clara e Francisco de Assis? Como podemos alimentar de maneira mais intensa essa espiritualidade?

Conclusão
No primeiro estudo feito pelas fraternidades, foram levantados muitos desafios do momento presente. Mas sabemos que também hoje, como no tempo de Clara, há pessoas e grupos que já estão enfrentando esses desafios com ousadia e criatividade. Pessoas e grupos que participam de projetos e movimentos, que se abrem ao diferente, que não têm medo das incertezas e inseguranças, que percebem nas crises a possibilidade de crescimento. Ou seja, pessoas e grupos que não deixam morrer o sonho e são capazes de abrir “portas não costumeiras”. Não seria este também o nosso momento?!
Petrópolis, 17 de maio de 2011
Delir Brunell

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