segunda-feira, 12 de julho de 2010

Texto reflexivo do encontro do dia 10/07/10

PERSPECTIVA DE MISSÃO ASSUMIDA POR JESUS E POR
FRANCISCO E CLARA DE ASSIS
Alzira Munhoz – CF

Jesus foi provocado a abrir sua consciência e ampliar seu olhar para além das fronteiras judaicas

Antes de tudo é preciso dizer que no início de sua missão Jesus se compreende como missionário para o povo judeu e declara abertamente que não veio “senão para as ovelhas perdidas de Israel” . Poucas vezes os evangelhos o apresentam atuando fora do território palestinense. São sempre os gentios (os poucos que aparecem nas narrativas dos evangelhos) que se aproximam de Jesus; nunca o contrário. Mas, aos poucos Jesus vai percebendo que é preciso ampliar os horizontes. Temos que reconhecer que ele (ou as comunidades cristãs dos evangelhos) foi profundamente questionado e provocado a abrir sua consciência para além das fronteiras judaicas, desafiado por situações e problemas apresentados pelos próprios estrangeiros, como no caso da mulher anônima cananéia ou siro-fenícia, do centurião romano, dos pobres e dos samaritanos .

A opção teológica de Jesus pelo Reino

De outro lado, Marcos relata que após seu batismo Jesus declara o Reino como o eixo teológico da sua pregação-missão. E Lucas mostra que ela destina-se particularmente aos pobres e excluídos: “O Espírito do Senhor me ungiu e me enviou a proclamar a Boa-Notícia aos pobres e...” . Para realizar o projeto do Reino Jesus não se filiou a nenhum grupo de sua época (fariseus, saduceus, zelotas, essênios, herodianos...) porque percebia que a teologia desses grupos era muito particularista e discriminadora. Já a proposta reinocósmica de Jesus era aberta e inclusiva.

O Reino se caracteriza pela compaixão, gratuidade, misericórdia e justiça

Na trilha da teologia do Segundo e do Terceiro livro de Isaías , Jesus entende que o Deus do Reino caracteriza-se pela compaixão gratuita sobre bons e maus, justos e injustos, judeus e gentios, homens e mulheres, mas principalmente sobre os pobres, deserdados, pequenos e excluídos... . Sua preocupação missionária foi tentar fazer seus compatriotas – sobretudo os que exerciam influência sobre o povo – compreenderem que a dinâmica do Reino extrapolava as concepções teológicas e as práticas legais dos grupos de sua época. Por isso, Jesus não se preocupou em arrebanhar prosélitos como faziam os fariseus, e nem mesmo em arrebanhar discípulos ou converter gentios. O envio missionário visando que “todas as nações se tornem discípulas” deve ser compreendido no contexto pós-pascal das comunidades cristãs. Aliás, todos os envios missionários de Jesus, narrados nos evangelhos, são apresentados em contexto pós-páscoa .

O Reino está aberto a todas as pessoas e exige decisão, mas nem todas se comprometem com ele

Todavia, embora Jesus tenha delimitado sua pregação a Israel conclamando-o a se converter em vista da iminente manifestação do Reino de Deus, ele insistiu que o Reino estava aberto a todas as pessoas: publicanos, pecadores, pessoas fora da lei e até mesmo os gentios seriam incluídos conforme indica Mateus: “Eu vos digo que virão muitos do oriente e do ocidente e se assentarão à mesa no Reino dos Céus com Abraão, Isaac e Jacó” . Nessa mesma linha de abertura teológica situa-se o texto sobre o julgamento final .

Jesus escolhe deliberadamente seguir a teologia não oficial

Nesse contexto, fica mais clara para nós a opção teológica e missionária de Jesus: como leigo (Jesus nasceu, viveu e morreu leigo), ele tornou-se um adepto da teologia do Segundo e Terceiro Isaías. Toda a sua vida foi uma manifestação de repulsa à teologia excludente do sistema templo-sacerdócio-culto, e de rompimento com as regras de pureza legal mantida pelos doutores, escribas e sacerdotes em prejuízo da pertença dos pobres, dos pequenos e dos pecadores ao povo de Israel. Concretamente: o centurião, os leprosos, as prostitutas e outras mulheres, os publicanos, as crianças, os doentes, os samaritanos, os estrangeiros, enfim, uma multidão de pessoas excluídas e abandonadas à própria sorte.


Ele nunca apoiou e alimentou o culto e a teologia do Templo


A parábola do filho pródigo deve ser lida nesse contexto: aqueles judeus que se consideravam os “puros” e “bons”, que não transgrediam a lei, e os demais, que deviam ser malditos porque eram pecadores e impuros. As leis sobre o sábado, os ritos de purificação, as normas de comunicação, as questões étnicas, a relação com os estrangeiros, tudo foi questionado por Jesus. Ele nunca alimentou o sistema cúltico e a teologia do templo. Pelo contrário, tentou desmontar o sistema de exploração e de exclusão que o templo simbolizava e materializava. Desde pequeno Jesus participava ativamente da sinagoga, que era o lugar dos leigos. Lá eles podiam falar, tomar a palavra, ler e interpretar a Torah . Foi na sinagoga de Nazaré que Jesus declarou publicamente sua opção pela teologia do Segundo e Terceiro Isaías e apresentou seu projeto de missão , inspirado no profeta Isaías .
As três vezes que os evangelhos mostram Jesus no templo há problemas com a interpretação teológica e as práticas excludentes dos doutores da lei: primeiro na apresentação (a espada, o sinal de contradição, o idoso, a viúva, pobres e excluídos); segundo no debate com os doutores e mais tarde na expulsão dos vendedores .

Sua missão consiste em incluir os pobres e os pequenos e recuperar sua plena humanidade

Em resumo, Jesus assume sua missão sendo solidário com os indefesos da sociedade, ficando do lado das pessoas oprimidas, manifestando-se contrário à sua exploração, declarando-as bem-aventuradas e demonstrando, através de atitudes concretas, que no Reino de Deus não deve existir discriminação alguma devido à cor, sexo, etnia, geração, cultura, ou de qualquer outro tipo . Por isso ele conversa com mulheres em público , acolhe pessoas doentes e estrangeiras e sobrepõe-se a todas as interpretações teológicas e às leis que escravizam o ser humano , pois sua missão consiste em “incluir os pobres e pequenos e recuperar sua plena humanidade” .

Jesus apresenta e testemunha um Deus diferente

No modelo de sociedade pleiteada por Jesus, não pode haver espaço para o ódio, mas para relações de irmandade e solidariedade. Ele alerta que de nada adianta apresentar oferendas a Deus se o coração está cheio de rancor; é necessário perdoar sempre, ser compassivo/a e acolher o projeto de amor e justiça do Reino . Por isso Jesus apresenta uma imagem de Deus diferente daquela em que as pessoas do seu tempo acreditavam ; ele fala de Deus como paizinho amoroso , cuidadoso, bondoso, compassivo , misericordioso , próximo, que ouve os clamores de seus filhos e vem em seu auxílio . Este Deus é apresentado através da sua própria pessoa: quem me vê, vê em mim meu Pai , porque nós somos um . Através de suas obras todos devem reconhecer que ele realiza sua missão em consonância com o Pai que o enviou e com o Espírito que o ungiu, o consagrou e o enviou (Dimensão trinitária da missão).

Ele confia a outras pessoas a continuidade de sua missão

No entanto, Jesus não só concretiza a missão que o Pai lhe confiou; ele também confia a outras pessoas a continuidade de sua missão. Chama-as para que participem do que ele faz ; dá-lhes o esclarecimento necessário para que compreendam o sentido e o porquê de tais ações ; reveste-as de autoridade e as envia a testemunhar e comunicar o que viram e ouviram, isto é, a proclamar a Boa-Notícia da chegada da Basiléia, o Reinado amoroso de Deus .

O Reino já faz parte da história de cada pessoa; é atravessado pelo bem e também pela violência

Na perspectiva de Jesus o Reino já faz parte da história de cada pessoa –“O reino de Deus já está no meio e dentro de vocês” – embora Jesus também indique que o Reino ainda está por vir e acontecerá em plenitude somente quando o poder do mal que atinge os seres humanos for superado totalmente . Por isso, os discípulos e discípulas, e todas as demais pessoas que aderirem ao Reino não devem desanimar, nem mesmo nas perseguições , mas enfrentar todas as situações com coragem , sabendo que não estão sozinhas; Jesus permanece com elas por meio do seu Espírito na missão de tornar presente o Reinado amoroso de Javé .

A exemplo de Jesus, a opção de Francisco também o leva para longe da oficialidade social e eclesial e para junto dos excluídos/as do seu tempo

Francisco de Assis foi uma das pessoas que mais entendeu a opção de Jesus pelo Reino e redescobriu sua humanidade pobre , encarnada nos mais pobres dos pobres que eram os hansenianos (leprosos) com quem foi viver. Por isso inventou o presépio, símbolo da pobreza, da pequenez e da simplicidade. Fundou uma ordem religiosa itinerante, pois os frades iam pelos caminhos evangelizando na língua de cada local e não em latim que era a língua oficial. Foi o primeiro a ganhar licença de celebrar a missa fora, no campo e nas praças, desde que houvesse a pedra d’ara (um pedaço de pedra contendo uma relíquia de santo).

Contemplando Jesus Francisco descobre e propõe outra forma de viver o cristianismo

Até Francisco, o cristianismo vivia a dimensão vertical: todos são filhos e filhas de Deus. Com ele, começou a se viver a dimensão horizontal: se todos são filhos e filhas, então todos são irmãos e irmãs. Não apenas os humanos, mas cada ser da criação. Com enternecimento ele chamava com o doce nome de irmão ou irmã a estrela mais distante, o passarinho na rama, o sol, a lua e a lesma do caminho. Depois de séculos em que o cristianismo se fechou nos conventos e se concentrou apenas nas palavras sagradas, Francisco descobre Deus na natureza. Ela não é mais paganizada, cheia de divindades nas fontes, nas montanhas e nas árvores. Ela é o grande sacramento e revelação de Deus. Assim, Francisco fundou um novo humanismo, uma síntese feliz entre a ecologia exterior (cuidado para com todos os seres) e a ecologia interior (ternura, amor, compaixão e veneração).

Para Francisco o seguimento de Jesus é uma resposta a uma exigência profunda de “algo mais”...

Em São Francisco, tudo é simples e direto. Não há nenhuma sofisticação nem segundas intenções. Nele, aparece o ser humano em sua inocência original, perdida na história por mil interesses individualistas e pela fome de poder, pela busca de cargos e status social e de acumulação de riqueza. Ele mostrou que ser pobre voluntariamente é muito mais que não ter nada; é a continuada vontade de dar, de mais uma vez dar-se e de se despojar de todo interesse para poder comungar diretamente com as coisas e as pessoas, essa vontade de estar junto e de sentir o coração do outro, da outra. No fundo, o ser humano sonha com um mundo no qual reine tal inocência, onde todos possam se sentir filhos e filhas da alegria e não seres simplesmente condenados a viver num vale de lágrimas. Esse foi o sonho de Jesus de Nazaré, que Francisco conseguiu captar e dar uma resposta concreta.

Como Clara de Assis entende e vive o projeto de Jesus de Nazaré


Clara, filha de nobres, vive em seu coração um desejo de plenitude. Nada nela é feito de coisas pela metade. Nada é medíocre. Nasce, cresce e vive em ambiente de paz, no seio de uma família nobre e bem aquinhoada. Escuta a mãe falando das coisas da Terra Santa e vai nutrindo misteriosamente o desejo de ser somente de Deus. No ar da época há um desejo de volta ao Evangelho... Mulheres beguinas peregrinam de um lado para o outro. Tudo se acelera quando aparece um moço de Assis chamado Francisco. Aquele jeito de viver, aquela energia e a força que irradiava “precipitaram” as coisas. Ela queria o Evangelho... e o Evangelho todo... espelhado agora no jovem Francisco. Clara segue o mesmo caminho de Jesus e de Francisco: dos pobres e da pobreza. O seu perfil feminino, material e fraterno se delineia especialmente na sua capacidade extrema de compreensão, acolhimento, ternura, afeto. As fontes clarianas revelam em abundância suas atitudes e sua postura amorosa, atenta e serviçal que sabe colocar-se como serva humilde de suas irmãs, lavar seus pés, servi-las à mesa, levantar-se à noite para cobri-las, atender ao cuidado das enfermas ao mesmo tempo em que acolhe os pobres, os abençoa, ora com e sobre eles e os conforta.
Ela deixa para Inez de Praga (e para nós hoje) um de seus mais belos escritos sobre o seguimento de Jesus:

“Minha irmã, não perca de vista o seu ponto de partida... Em rápida corrida, confiante e alegre, avance com cuidado, com passo ligeiro e pés seguros no caminho das bem-aventuranças, de modo que seus passos nem recolham a poeira. Não consinta com nada que queira afastá-la desse propósito, ou que seja tropeço nesse caminho” (2ª Carta de Santa Clara de Assis a Santa Inês de Praga).

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