quarta-feira, 14 de julho de 2010

História de Francisco de Assis por Stanislas Fumet

São Francisco nasceu em 1182 na cidade de Assis (Itália), no seio de uma família abastada. Viveu e pregou infatigavelmente a pobreza e o amor de Deus a todos os homens. Fundou a Ordem dos Frades Menores (franciscanos); com Santa Clara, as Damas Pobres (clarissas); e a Ordem Terceira, para os leigos. Morreu em 4 de outubro de 1226.

O Poverello ganhou a alcunha à força de tornar visível no corpo a prática da pobreza espiritual. Desde o princípio da conversão, ou melhor, para sermos mais exatos, já antes de pensar em se converter, o que faz a originalidade de Francisco é a atração que sente pelos mendigos; o que há de mais elevado na sua alma é atraído pelos leprosos, tão repugnantes aos olhos da carne, mesmo na época em que, só a idéia da dor, como ele confessa, o aborrecia. Toda a cristandade gosta de recordar os primeiros gestos públicos de Francisco: preparava-se ele para ir com um nobre de Assis ao encontro do exército pontifício que estava na Apúlia. Esperava ser armado cavaleiro e, com esta intenção, arranja uma equipagem magnífica. No dia da partida, montado no seu cavalo, irradiando da cabeça aos pés, Francisco, tem a desgraça de encontrar um cavaleiro autêntico – cuja extrema pobreza o enche de compaixão. Ele, que ainda não é cavaleiro, não suporta tal injustiça. Entrega ao outro a capa e a túnica que levava e todo o seu equipamento de grande senhor.
Nessa mesma noite Francisco tem este sonho: alguém o chama pelo nome, lhe pega na mão e o conduz a um maravilhoso palácio, ornado com toda a espécie de armas.


É lá que vive uma moça deslumbrante que encanta Francisco. Mas o palácio torna-se mais maravilhoso à medida que ele o vai percorrendo. De quem é tudo isto? “Teu e dos que te seguirem”, respondeu o guia. E depressa se dá o encontro com a encantadora jovem. E assim, ao acordar, Francisco não esconde aos que o interrogam que está para se tornar um grande príncipe. Os companheiros de folia começam, então, a supô-lo apaixonado. “É verdade, diz, penso em casar-me. E vós nunca vistes noiva tão bela e tão nobre como a minha!”

O cavaleiro enamorado visitava os pobres da cidade e levava-lhes presentes. Nesse tempo, o mais elegante e o mais perdulário jovem de Assis só via na riqueza ocasião de distribuir, e nas posses ocasião de dar.
Na peregrinação para Roma, ainda fará mais. Indignado da mesquinhez dos cristãos na porta da Basílica de São Pedro, quer saber o que rende um dia de esmolas e de que modo em Roma se tratam os pobres. Compra, para isso, roupas a um miserável mendigo veste-as e, durante um dia inteiro, torna-se mendigo com os outros mendigos. É asperamente tratado como os outros, molestado como eles. Desde essa altura, sabendo o que custa ser pobre, sente-se mais próximo da Dama dos seus pensamentos.

Mas um leproso ainda é mais que pobre. Um leproso é pobre até na carne. Não está apenas reduzido aos seus limites carnais, é devorado na própria nudez. O leproso é o horror de Francisco. Encontrando um na beira da estrada, depois de uma volta a cavalo, salta para o chão, dá-lhe algum dinheiro e acompanha a esmola com um sorriso; depois, cheio de audácia, beija-lhe a mão e, louco, não fica por aí: abraça-o completamente. Alegria da Noiva no palácio da alma.

Cristo fá-lo seu confidente. Dirige-se através da expressão mímica de um crucifixo patético a este jovem delicado, folgazão, amigo de gozar. Pede-lhe no santuário de São Damião, como em sonhos, que restaure a igreja que cai em ruínas. O alegre trovador não hesita. Põe imediatamente mãos à obra. São Damião é uma autêntica leprosa. E, com o tempo, torna-se incontestável que esta pequena igreja leprosa é apenas o símbolo da grande Igreja de Deus. E com efeito, diz-se que o próprio papa Inocêncio III viu, em sonhos, Francisco de Assis erguê-la e ampará-la com todas as forças sobre-humanas. Tendo-lhe falado o crucifixo, não se sentirá Francisco crucificado em espírito? Ah! Que aventura! E é sempre a pobreza que vai beneficiar: Francisco... não vamos dizer que rouba o próximo, mas... tira dos armazéns do pai um lote de fazendas que vai vender a Foligno. Vende, também, o cavalo, que lhe pertence inteiramente. Depois entrega ao padre que guarda a igreja de São Damião, toda a quantia que cobrou para que se iniciem as obras. O guardião, inquieto, recusa o dinheiro, mas Francisco Bernardone, sem se comover, lança a bolsa pela janela.

Nada Nada é tão conhecido na vida de São Francisco como a série de acontecimentos que antecederam a sua vocação: as lutas com o pai, o refúgio numa gruta, o regresso a Assis, a maldição paterna, as zombarias dos habitantes da cidade, a crescente cólera do pai, que o espanca e o mantém prisioneiro, depois a transformação que se dá na vida do jovem, a partida de casa, a restituição do dinheiro e das roupas, a denudação magnífica ante o bispo e a perfeita libertação franciscana, o risco absoluto do Poverello.
Foi assim que se tornou o “arauto do grande Rei”, que anunciou as conquistas do Onipotente, de quem recebemos tudo e que está acima de tudo, porque este tudo vem depois dele, porque Ele não é nada do que é concebível e mensurável e porque nenhum atributo diz tanto dele como o amor indefinível. O arauto do grande Rei fazia-se mendigo de pedras. Propunha a todos que colaborassem na sua ação reparadora; prometia recompensas proporcionadas ao número de pedras que lhe fornecessem para reconstruir São Damião.

Francisco continua a beijar os leprosos; o célebre guloso regala-se com uma horrorosa caldeirada feita com os restos das tigelas que a boa gente de Assis despejou na gamela que ele estendia à sua caridade. O corpo revoltava-se, a alma maravilhava-se, o espírito exultava no Senhor, – e a Noiva do seu coração infinito vibrava de alegria no palácio do Absoluto onde habita o grande Rei. Reconstruiu outras igrejas e particularmente Santa Maria da Porciúncula, que tanto lhe convinha não só por ser pequena e isolada, no meio dos bosques, mas também por a dizerem freqüentada pelos anjos, e São Francisco não podia encontrar personagens que melhor o compreendessem que essas criaturas invisíveis e sempre tão ativas. Tendo de se ocupar dos homens, com certeza nunca os anjos tiveram maior consolação e mais profunda alegria do que ao servirem Maria, Nossa Senhora.

A Porciúncula, ou Santa Maria dos Anjos, o mais pobre dos santuários, ia tornar-se o berço da Ordem Franciscana, o presépio, talvez, de um mundo novo. Foi lá que Francisco, ao assistir à Missa, teve o sentimento da literalidade do Evangelho quando Jesus envia os discípulos, através do espaço, pelos caminhos do tempo, com a recomendação: Ide e pregai, anunciando que o Reino está próximo. Não queirais possuir ouro nem prata, nem tragais dinheiro nas vossas cinturas, nem alforje para o caminho, nem duas túnicas, nem calçado, nem bordão, etc.... Foi uma revelação para o neófito que gritava de alegria: “Eis, enfim, o que tenho procurado e o que eu quero de todo o meu coração!”

In continenti,tirou os sapatos, lançou fora o bordão e desfez-se da segunda túnica. Mandou fazer um fato em forma de cruz que é o escapulário franciscano, tirou o cinto para o substituir pela corda que todos os frades usarão à volta dos rins. E, pelo que consta, conseguiu em Assis o primeiro recrutamento, para a honra da sua Dama, a Pobreza. A pequena fraternidade ia-se agregando miraculosamente em torno da graciosa Dama dos sonhos de Francisco Bernardone, enquanto choviam sobre ele os escárnios e as injúrias da indignada população de Assis. [...] O bispo Guido, amigo de Francisco, preveniu-o contra os exageros. “Não se pode viver sem meios de subsistência! Quem vos diz que não irá morrer de fome uma irmandade como a que estais a formar?” “Se tivermos bens, responde Francisco, necessitaremos de armas para nos defendermos; e haverá histórias sem fim fim com todos os processos! Como poderíamos, depois, conservar o coração livre para amar a Deus?” O risco de não ter de comer e de estar privado de teto para se abrigar não lhe desagrada. E, além disso, há a Porciúncula, que é um pequeno lar todo de Deus. Quando pregarem nas imediações, ajudarão os pobres e dormirão como eles, sob os alpendres, sob o pórtico hospitaleiro das igrejas. “Depressa seremos oito companheiros. É verdade que os habitantes das cidades e das aldeias nos receberão, por vezes, como malfeitores, mas não somos nós todos malfeitores? Neste caso, por que razão nos queixaríamos?... ”

Quem será menos digno que Francisco! E quanto tempo perdeu nas dissipações da juventude! Foi-lhe dito na oração que tudo lhe fora perdoado e que agora se tratava de continuar a sua obra, sabendo que a irmandade da Pobreza se transformaria numa grande força que cobriria a terra inteira. Esta graça, recebida no decurso de uma viagem ao vale de Rieti, exatamente acima de Poggio-Bustone, animou-o tanto que quis contá-la aos companheiros de viagem. “O Senhor, disse-lhes, revelou-me que nos estenderemos até aos confins da terra”. Fala como o Evangelho. Tinha visto entrar na sua Ordem homens de todas as nacionalidades: franceses, espanhóis, alemães, ingleses, irmãos que se exprimiam em todas as línguas. Em Roma, perante o papa Inocêncio III, não receia empregar uma comparação para fazer aprovar a Regra: “Vivia uma mulher no deserto; era muito pobre, mas extremamente bela. Um rei amou-a, desposou-a e deu-lhe formosos filhos. Mais tarde, depois de o rei se ter ido embora, a mãe disse aos filhos quem os tinha gerado. Que lhes importava, afinal, serem tão pobres se a própria miséria era uma miséria de filhos de rei? Foram, então, ao encontro do rei seu pai, que os reconheceu pelo muito que se pareciam com ele e os fez seus herdeiros...” Inocêncio III aprovou a regra da pobre mulher do deserto, mas a título provisório. As qualidades da regra ressaltarão, com o tempo. Era a regra primitiva, a regra do perfeito risco.

Foi considerada inaplicável. No entanto, não era intenção de Francisco propor aos seus filhos algo de difícil. E foi aqui que começou o mal-entendido. Com Francisco trata-se de se ser feliz, de se estar na paz do Criador, em harmonia com a Criação. Mesmo quando se praticam ações reparadoras é como se reerguêssemos uma igreja, ou a Igreja de Deus. É construção na alegria, serviço benévolo; é misericórdia e não sacrifício. Os homens não têm o coração moldado como o dele: bem quereriam seguir à letra a regra de Francisco, mas não podem. Todo o drama franciscano está contido nisto. Francisco tem de modificar a regra primitiva; em 1221, escreve uma segunda versão, a que foi entregue ao Irmão Elias, que logo a perdeu. Sem desanimar, o fundador retira-se de novo para as montanhas para ditar uma terceira ao Irmão Leão, mas, no fundo, é sempre a mesma, a regra que os discípulos não querem. Não é contra a forma, é contra a essência da regra que se revoltam. Mas Francisco não pode ceder no essencial. O cardeal Ugolino, o futuro Papa Gregório IX, a quem Francisco apresenta esta regra sob uma forma que julga definitiva, não receia amputá-la aos olhos do Poverello, seu amigo, e se, mutilada, fica mais sólida, mais séria, mais adaptada à terra como toda a regra que se preza, poderemos imaginar o que teve de suportar o coração de Francisco diante desta cristalização que parecia tirar à sua obra todo o fervor divino.

aceitou da Santa Sé a supressão do artigo (outrora aprovado por Inocêncio III) que estipulava: “Quando os Irmãos forem através do mundo, não levem nada consigo, nem sacos, nem alforjes, nem pão, nem dinheiro, nem bordão, etc...” Houve outras supressões ditadas pela prudência romana, tão cautelosa na nossa submissão ao amor; por exemplo, a do capítulo que exortava os Irmãos a verificarem, nas aldeias onde passassem, se o Santíssimo Sacramento estava guardado em lugares convenientes e tabernáculos decentes para, no caso negativo, informarem o pároco. Francisco não tinha pensado nos conflitos que tais advertências fatalmente provocariam entre religiosos e seculares.

O que se conservou da regra primitiva foi a obrigação de praticar, apesar de tudo, a pobreza absoluta: pobreza que se traduzirá, materialmente, por trajos de preferência miseráveis e, espiritualmente, pela renúncia a fazer juízos sobre o próximo. Que forma tão requintada de pobreza! São obrigados a trabalhar, mas com a condição de o trabalho não destruir o espírito de oração; de o trabalho não cobrir a alma com os arreios das preocupações, de não embaraçar a sua nudez, de não a revestir contra a luz de Deus. Os Irmãos não possuirão nem as casas, que separam, nem terras, que nos fixam. Passarão pelo mundo como peregrinos, sem ganhar raízes; como estrangeiros, tendo consciência que estão no mundo sem estar, que não estão na sua casa, mas na casa de Deus, que está em toda a parte A regra, assim entendida, não perdeu, portanto, o seu vigor espiritual. Mas o que o pobre Francisco teve de suprimir era o que tinha de mais concreto: o hic et nunc sensível, num símbolo que, para Francisco, não é um intermédio espiritual entre o visível e o invisível, mas o lugar autêntico em que o invisível se torna visível. O cordeiro não representa Jesus Cristo: não o mostra, dá-o a tocar. Há que fazer compreender este milagre perpétuo a homens que têm necessidade de o pensar e de o demonstrar antes de o poder viver! Se há um erro no “sistema” do Poverello, não é culpa dele; é culpa nossa. O cardeal Ugolino, que admirava Francisco, devia sorrir ao ler certos textos; e não era por os não apreciar que os cancelava. Era cardeal e conhecia o mundo, as suas infernais faculdades de resistência. O generoso Francisco tinha, também ele, já uma idéia – experimentara-a bastantes vezes –, mas não era a mesma coisa: Francisco estava disposto a arrancar a essa resistência um acréscimo da alegria a que os espíritos mal informados persistem em chamar dor.

Mas não deixa de ser verdade, parece, que Francisco nunca sofreu tanto como por causa dessa criança enjeitada, filha da alma de Jesus Cristo, a sua regra, que assim desnaturavam a seus olhos. Já não podia defender os interesses de Cristo se se ligavam com o seu amor-próprio. Não podia ir contra o Pai, nem contra o Papa, nem contra a Igreja, ele que procurava a pobreza na obediência, a submissão absoluta “Pobre homem, porque estás tão triste? “, pergunta-lhe um dia o Senhor, que o vê afligir-se pelo estado moral dos Irmãos. E Jesus consola-o: “Não te perturbes; trabalha para a salvação!”
***

Francisco

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