Jung Mo Sung
Diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S.
Paulo.
Fonte: Adital
É da própria lógica de funcionamento de
sistemas ou instituições sociais tratar o indivíduo humano como uma peça da sua
engrenagem e, desta forma, valorizá-lo na medida em que cumpre com as
exigências do próprio sistema. Quanto mais totalitário o sistema, mais o ser
humano é reduzido à condição de elemento do sistema e nada mais. Em uma
sociedade capitalista neoliberal, como afirmei no artigo anterior, "os direitos humanos foram substituídos
por ‘direito do consumidor’, porque, no neoliberalismo, quem não é consumidor
não é humano, portanto não possui direitos fundamentais”.
É claro que legalmente falando, mesmo
um indivíduo totalmente excluído do mercado, um miserável, não deixar de ser
considerado humano, mas na vida cotidiana real e nas dinâmicas sociais e
econômicas ele não tem seus direitos humanos fundamentais reconhecidos e
respeitados. O mercado, na cultura capitalista, passou a ser considerado a
fonte da humanidade e, portanto, fonte dos direitos fundamentais.
Essa experiência cotidiana está tão
internalizada na nossa cultura que, quando alguém se sente "menos gente”,
deprimido ou "impuro”, uma das soluções mais procuradas é ira ao shopping
fazer compras. É no contato direto com o que há de mais esplendoroso do
mercado, as vitrines dos shoppings com objetos e marcas glamorosos, que o
indivíduo se sente recuperando a humanidade perdida. No passado, as pessoas em
situação semelhante iam a igrejas ou a lugares sagrados rezar ou realizar algum
ritual porque, nessa cultura, a religião, o sistema religioso, era vista como a
fonte da humanidade. Por isso, quem era ateu ou de outra religião que não a
dominante era visto como um indivíduo carecendo de humanidade plena.
A luta pelos direitos humanos no século
XX não foram somente lutas "políticas” contra Estado totalitário ou
ditatorial (seja nos países capitalistas ou comunistas), eram e são
fundamentalmente a afirmação da dignidade fundamental do ser humano anterior a
qualquer instituição ou sistema social (sistema de mercado, Estado,
Igreja,...). Portando, os direitos fundamentais de todo ser humano a vida digna
e, por isso, a direitos como a moradia, saúde, educação, ao trabalho
remunerado, liberdade de expressão, de ir e vir são anteriores e independentes
do lugar que a pessoa ocupa no sistema social dominante.
Não é pertença a uma religião ou igreja
que dá dignidade ou valor a uma pessoa. Em termos de sistema religioso, a
afirmação dos direitos humanos se fundamenta no princípio de que Deus não faz
distinção entre pessoas, não importando se é "judeu ou gentio” (sistema
político-religioso), homem ou mulher (sistema de parentesco e de gênero), livre
ou escravo (sistema de propriedade/economia) e outras distinções e hierarquias
sociais que temos. Em uma linguagem teológica cristã, poderíamos dizer que os
direitos humanos se fundam na graça de Deus (Deus não impõe nenhuma condição
humana, social ou religiosa para amar a todos).
Assim também, não é pertença ao sistema
de mercado e a capacidade de consumo que dá fundamento aos direitos humanos na
sociedade capitalista; nem ser cidadão legalmente documentado no mundo
globalizado que se fecha aos fluxos imigratórios de trabalhadores buscando
sobrevivência; ou então ser leal e obediente ao Estado socialista em países
governados por partidos comunistas.
A luta por um "outro mundo
possível” não pode ser por um tipo de sistema político-econômico alternativo
definido como absoluto ou como critério último para as decisões concretas.
Pois, se o sistema ou instituição é tomado como critério último, a dignidade do
ser humano fica condicionada a pertença e à lógica dessa instituição ou sistema
e se nega a anterioridade da dignidade e dos direitos humanos em relação a todo
e qualquer sistema social. Não há possibilidade de realização dos direitos
humanos sem sistemas e instituições sociais, mas devemos garantir que esses
direitos sejam vistos como anteriores a sistemas. Se não, cairemos em
totalitarismo, seja do sistema de mercado total, seja do Estado socialista
totalitário ou de qualquer outro sistema político-social ainda a inventar. (a
continuar)
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